segunda-feira, 16 de março de 2015

A devassidão de Jeito de matar lagartas, de Antonio Carlos Viana



O Jeito de matar lagartas (2015, Companhia das Letras) de Antonio Carlos Viana nos arrebata pelos “sentimentos radicais” encenados nos contos: como a consciência da morte, da ruína do corpo ou o erotismo, destituído quase sempre da noção de prazer.  Os personagens  – velhos, sobretudo –, são  marcados pela aguda consciência da passagem do tempo, representada pela cruel decadência dos corpos.

Jeito de matar lagartas revela que a literatura – a autêntica – não é inocente. Ele nos provoca e nos contamina, desnudando a pequena miséria humana. O livro nos põe diante de contos que reverberam a crueldade da vida humana. Ao devassar a vida das personagens das narrativas que o compõe, o livro nos põe diante de nossa própria devassidão. É aí que está o seu valor, pois nos permite tomar consciência de nossa condição.

Diferente dos livros anteriores em que a infância, associada à descoberta tumultuada de algum aspecto da realidade, ganha maior destaque. Jeito de matar lagartas dá ênfase ao mundo adulto,  em alguns textos ao universo da velhice.

Em um mundo marcado pelo “culto solitário do corpo” e pela recusa desesperada recusa de si, o livro de Viana nos deixa diante da certeza de que “cada dia, a cada hora, cada minuto, [é] uma derrota garantida, um passo em direção ao próprio desastre” (Carrière, 2007). 

É o que acontece, por exemplo, em “Dona Katucha” que narra a história de uma velha que tenta fugir da consciência de que seu corpo envelheceu e já não atiça os olhares dos homens. A solução para ela é: “depois de beber, [passar] batom nos lábio e se [ir] trôpega pelos corredores, evitando as vitrines espelhadas”. Ou em “Professor Locarno” que conta a história de um velho professor de quem a família comemora mais um aniversário. No momento da festa, seu desejo era que “o coração afrouxasse de vez e nunca mais ele soubesse o que significava outro dia”. Mas o outro dia chega com a enfermeira que vem trocar sua fralda e que, a ele, parece Carmen Miranda. 

Ainda nessa linha “Florais” com história de Dona Delfina, que, mesmo com a decadência do corpo, ainda vislumbra a possibilidade do prazer, pois “tudo com Alan Delon se desenrolara com tanta naturalidade que ela não se assustou com nada, e só mesmo a Fúcsia da Califórnia para lhe dar aquela coragem de dizer que ainda havia um território em seu corpo que nunca fora explorado”.

Na outra ponta da vida, a da infância, no conto que empresta título ao livro, Jeito de matar lagartas, o menino-narrador faz uma associação entre as formas com que matava as lagartas e o jeito como a tia se contorcia embaixo de seu Laurentino.  Uma precisa associação entre prazer e morte. Em “Muralha da china”, a perspectiva infantil nos coloca diante da cena que dois irmãos, entre eles o narrador, montam para que os pais contem à vizinha a morte de seu esposo e de seu filho. O anúncio se transforma em um baquete desesperado até o momento em que a vizinha intui pelos implícitos e vazios da fala da mãe dos meninos a desgraça que lhe havia acontecido. Em “Cara de Boneca” a perspectiva infantil encena um erotismo cruel. Neste conto, o menino-narrador e seus colegas se dividem entre o ódio a dona Glorita e suas aulas de Camões e as experiências eróticas e o exercício da crueldade com seu Lilá – Cara de boneca. O menino-narrador no clarão de lucidez chega a afirmar que “[...] o mundo se dividia entre os de coração aflito e os de maldade extrema”.

O sentido dessas histórias não estão só nos temas, mas também na linguagem com que são construídas. A linguagem de Antônio Carlos Viana caracteriza por uma economia verbal marcada pelo uso direto das frases, por uma sintaxe enxuta e por uma extrema precisão vocabular. Muitos dos contos já começam buscando nocautear o leitor, como em “Cremação”: “Dona Deusinha sempre teve horror a morto”. 



Jeito de matar lagartas nos põe diante de situações em que os personagens vão despertando para a consciência da presença iminente da morte, da decadência do corpo, para o despertar do erotismo, cada vez mais dissociado da ideia de prazer. Como nos livros anteriores, a epígrafe apresenta a tônica do livro. E o verso de Wislawa Szymborska, sinaliza bem para o que é esse Jeito de matar lagartas:  “Não há devassidão maior que o pensamento”.     

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