segunda-feira, 1 de junho de 2015

Uma leitura, um tema, dois contos: O amor como deve ser, de Mayrant Gallo e Iniciantes, de Raymond Carver.


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Marte e Vênus. *Extraída do Web Site do Museu de Artes de São Paulo - Masp.

Li numa aula o conto “O amor como deve ser”, do livro O inédito de Kafka (2003), de Mayrant Gallo. Ao terminar a leitura, um silêncio incômodo se estendeu sobre a sala. Esperei algum comentário sobre o texto, alguma fala. Nada. Perguntei então o que acharam do conto. Uma aluna respondeu que o conto deveria se chamar “O amor como não deve ser”.
Ela leu o conto apenas pela história, pelo “acontecimento” (LEWIS, 2009). Como a história lhe causou uma impressão desagradável, sua solução, a princípio, foi mudar o título da história para que ganhasse um sentido negativo, de censura. Ela não recebeu “o texto em seu pleno direito”. Como a narrativa contrariou sua visão de mundo, seu código ético-moral, sua primeira atitude, foi censurá-lo.
O amor como dever ser” é uma narrativa dividida em duas histórias: a de Cátia e Cláudio e a de Cátia e o pai. Na primeira, num dia chuvoso, ela convida Cláudio a sua casa. Havia decidido transar com ele. Cláudio se lança a uma aventura intrépida que o jogaria de vez no mundo adulto. Cátia espera, aguarda em casa o jovem moço que se enche de dedos e não sabe conduzir uma partida ancestral entre um homem e uma mulher. Cláudio não soube decifrar os signos do jogo, da sedução.
Surge, então, a história de Cátia e a o pai. Ela agora é a aventureira intrépida que se lança numa aventura transgressora. Numa sexta-feira, o pai vai busca-la para passarem, juntos, o fim de semana juntos. Logo, o texto nos põe diante da relação incestuosa entre eles. O pai, exímio jogador, saber ler os signos do jogo homem/mulher. Um jogador que, mal recebe a filha, “toca de leve o tecido liso de sua calcinha” (GALLO, 2003, p. 12).
O conto, um exemplo da modernidade do gênero, fecha-se com um final aberto para que nós, leitores, decidamos o destino das personagens:


“Cátia se aproximou do pai e se enroscou em seu braço musculoso. Envolto numa sensação de boa de calor, ele fechou os olhos. Ela, ao contrário, abriu ainda mais os seus. Abriu-se sobre o pai, na noite, na estrada, no bloco veloz, que, de repente, surgiu diante deles...” (GALLO, 2003, p. 16).


Cátia, dois homens: Cláudio e o pai. Entre ela e Cláudio só a sintonia melódica dos nomes. Entre ela e o pai:


“marcas autênticas e mensuráveis do que tinham feito com a coragem que só o amor real e o desejo puro alimentam” (Gallo, 2003, p. 16). Marcas que um dia se “levantariam para censurá-los ou aplaudi-los, marcando uma nova etapa secreta” (GALLO, 2003, p. 16).


Ao ler o conto como um libelo ao incesto, perdemos muito daquilo que a literatura tem a nos oferecer. Lê-lo desta forma é esquecer que no texto literário não apenas a história interessa, mas também a forma como ela é contada. É preciso ler o texto por aquilo que ele nos dá a ler. Não somente em sua significação literal, sua significação de superfície, mas também pelos implícitos, pelos vazios, pela metáfora. O texto literário significa como sinal e como sintoma, ou seja, o texto significa literalmente e metaforicamente (Jouve 2012). Literalmente, O conto nos dá a ler que o amor dever ser como o de Cátia e o pai: incestuoso. Mas e metaforicamente?
O primeiro aspecto para ler este conto como sintoma é entendê-lo no contexto da literatura contemporânea. O texto não se apresenta como uma fábula moral e edificante. Pelo contrário, traz uma marca da literatura moderna e contemporânea: a sua negatividade. Mayrant Gallo dialoga com uma tradição que que passa por Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, J. J. Veiga, Machado de Assis, Faulkner, Hemingway, Nabokov. Como diria Bataille: a literatura não é inocente.
O amor entre Cátia e o pai é intenso, carnal, transgressor. Nele as interdições estão suspensas. Literatura é metáfora e jogo. Não podemos ficar apenas na história de superfície. A história do conto mexe com um tabu de nossa cultura, mas o autor não pretendeu dizer que o amor verdadeiro é entre pai e filha. Não é essa a defesa do texto. Em tempos de “amores líquidos”, em que as relações terminam tão rápido quanto começam, em que as relações são tão fágeis, insossas, passageiras, pobres, “O amor como deve ser” nos propõe uma receita de amor, que necessariamente não é durável; mas intensa que tradu-se pelo verso de Vinicius de Moraes: “Que seja eterno enquanto dure”.
Talvez o conto deva ter o título sugerido pela aluna acima, não pela história que conta, mas pela que sugere.“O amor como deve ser” nos aponta, às avessas, que estamos cada vez mais em relações enlatadas, superficiais e insossas.O conto faz parte de um livro de contos que nos oferece uma visão implacável da vida contemporânea. Em outro conto do livro, “A vida num domingo”. O sujeito, para se sentir vivo, arromba um apartamento de três jovens e, além de roubá-los, comete as maiores atrocidades com um cãozinho.
Ler o texto é olhar para as suas nuances, seu ritmos, suas escolhas lexicais, sua arquitetura narrativa, seus personagens, seu espaço, seu enredo. Lê aquém e além da história. Para aquilo que ele diz sem dizer. E, aqui, vale lembrar a vereda de leitura que nos abre Miguel Sanches Neto na orelha do livro O inédito de Kafka (2003): “Há uma preferência pelos seres desajustados. Não há possibilidade de redenção pacífica”. Mas ainda, a contracapa, de autoria indefinida, os personagens “abandonam seus fracassos, a mesquinha ordem cotidiana, e partem para a aventura, como Ícaros de nossos dias”. Essa passagem não explica bem “O amor como deve ser?


Para ler “Iniciantes”, de Raymond Carver, é necessária a mesma disposição para ir além do “acontecimento”. O conto narra o que seria uma conversa trivial de dois casais numa tarde de sábado, regida a gim. Como que por acaso, entram no tema do amor. Um dos personagens, Herb, um cardiologista, resolve desenvolver sua tese sobre o tema. Para ele, “o amor verdadeiro não pode ser nada menos que o amor espiritual”. Herb, divorciado, é casado com Terri, que fora casada com Carl, um sujeito que tentou matá-la e que depois suicidou. Para ela, tudo fruto do amor desesperado.
Quem narra a história é Nicky, um dos presentes a conversa. Talvez, um escritor, que observa para depois, no relato, nos dá sua visão sobre o tema. Nicky costura a narrativa para que, à medida que Herb for expondo sua tese, buscando clarear a definição de amor, o ambiente externo vá escurecendo, como se o sentido da tese e dos próprios personagens estejam se tornando obscuros. A conversa abala-os. Herb e Terri que afirmam amarem um ao outro ainda trazem muitos marcas das relações anteriores. Algo foi modificado após a conversa. Nicky diz: “Tive a sensação de que alguma coisa ia acontecer, era a lentidão das sombras e da luz e, o que quer que fosse aquilo podia me levar junto” (p. 278). Terri desaba no choro. E Laura, companheira de Nicky a consola. Ela olha para ele que pensa: “Foi como se me dissesse: Não se preocupe, vamos superar isso, tudo vai dar certo com a gente, você vai ver. Fique frio” (279).
Nicky então vira-se para a janela para descrever o escurecer. Mas o escurecer não é só externo, natural e um escurecer íntimo, psicológico, subjetivo, dele e dos outros personagens:


[...] Virei-me para a janela. Agora a camada azul do céu havia se rendido e estava escurecendo, como o resto. Mas tinham aparecido umas estrelas. Reconheci Vênus e, mais longe e para o lado, não tão brilhante, porém lá, no horizonte, de modo inequívoco, Marte. O vento havia ficado mais forte. Vi o que ele estava fazendo nos capinzais desertos. De modo insensato, pensei que era muita pena que os Mcginnis não tivessem mais cavalos. Eu queria imaginar cavalos correndo por aqueles campos, na penumbra do crepúsculo, ou apenas parados, sossegados, com a cabeça voltada na direção oposta à cerca. Fiquei junto à janela e esperei. Sabia que tinha de ficar quieto por mais tempo, manter os olhos voltados para lá, para fora da casa, enquanto houvesse alguma coisa para ver (CARVER, 2009, p. 279).


Este é um último parágrafo do texto, lê-lo na sua literariedade; é perder a riqueza de matizes significativas que o conto nos oferece. O primeiro aspecto é comparação: “escurecendo como o resto”. O que seria este resto? Talvez suas certezas, suas verdades, seus sentidos. Em seguida, a frase que expressa o nascimentos de Vênus e Marte. Dois astros celestes nomeados com os nomes da deusa do amor e do deus da guerra, na mitologia greco-romana. O narrador revela logo Vênus e vai delineando, encompridando a frase com elementos intercalados até apresentar Marte, no polo oposto, mas ali, presente. Logo após essa apresentação, o vento fica mais forte. E ele deseja que os anfitriões tivessem cavalos. Mas o que significa cavalos aí? Um estado natural, liberdade? Na simbologia, os componentes animais e irracionais do homem. O estado natural.
Desesperado, tentando reter algo, Nicky continua olhando pela janela para não deixar escapar ainda o que pudesse ser visto. Mas ainda tentar, pelo olhar, capturar algo que ainda tenha sentido.


Dois contos, o mesmo tema. No primeiro, uma receita de amor às avessas, no outro uma tese que pouco esclarece, mas que dilacera certezas. Duas histórias que não se esgotam na superfície das histórias que contam, mas que nos dizem muito pela forma como as conta. Pela metáfora que encerram. Pelas experiências singulares que dramatizam.