quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A volta

Ele veio chegando; ao longe indefinível. Ao próximo, delineou forma conhecida. Entrou. Cesinha!, eu disse. Olhou surpreso, como se o nome fosse desconhecido ou não lhe agraciasse. Faz vinte anos foi embora, parecia o mesmo: as feições fortes e o corpo magro de sempre. “Que é que se faz Cesinha para ficar novo a vida inteira?”, perguntei. Eu que tinha a mesma idade dele. Cesinha!, falei do novo. Novo silêncio. “O que veio fazer aqui?”, pensei cá comigo. Ele que naquele dia foi embora, deixando Rosa sozinha. “Uma coca-cola”, pediu igualzinho.
Morava com Rosa na casinha velha que foi de seus pais. O pai morreu cedo, de chagas; a mãe, quando eles apontavam para os segredos da vida. Em criança, brincavam juntos, pareciam mambaços. Nas brincadeiras de menino, Rosa; nas de menina, Cesinha. Contrariando o falatório, a mãe gostava; dizia: “Cuida bem de Rosa, Cesinha”. Quando ela morreu, ele foi trabalhar na fazenda de seu Elias. Ela lavava roupas de ganho.
Eram de poucas ou nenhumas amizades viviam pro trabalho e pra casinha lá deles. Cesinha, moço bonito, logo ganhou feições adultas. Era magro, mas despertava a cobiça das moças. Nunca quis nenhuma. A gente desconfiava, mas nada difamava sua honra. Comigo, trocava algumas palavras. Pedia uma coca-cola, falava do tempo e ia se embora. Eu dizia que não nasceu pras vivências do comum.
Rosa, dada aos silêncios, saía pouco. Na escola, sem Cesinha, cabisbaixa e só. Mulher formada guardava os segredos da perdição. Ganhou formas em que a gente se perdia, eu e todos os moços daqui. Sempre escondida e silenciosa. Só quando lavava a roupa no rio a gente entrevia o sumidouro que era suas coxas. Mulher de devoções, não perdia novena. Cumpria cada preceito: Missões de padre, se confessava; semana santa, leis todas. Assistia missa de joelhos e sempre derramava algumas lágrimas de pecado escondido. Cesinha acompanhava tudo, muito contrito.
Olhei o homem em minha frente; o silêncio continuava em seu rosto, o silêncio antigo, de quando entrou, pediu uma coca-cola e seguiu estrada afora. Rosa apresentou -lhe um tal José Dias, vaqueiro da fazenda Munlungu, lá no Sem-Dono. Ensimesmou-se, mornou no silêncio e se foi. A gente olhava com inveja o casal, tanto que a gente queria aquela moça, e ela arrumou um homem de fora.
Meses depois Rosa pariu um menino amarelo com traços dos seus. Lázaro, o nome que lhe deram. O pai, José Dias, bebeu muito o nascimento do filho. Na ida para casa dizia palavrão e repetia: “este amarelo é filho meu, este amarelo é filho meu”.
O menino crescia ganhando feições conhecidas. Veio a infância das descobertas e travessuras. Crescia sozinho, apartado das outras crianças. Sempre que uma mãe encontrava o filho com ele dizia “entre não quero você brincando com este filho do pecado”. Xingavam Rosa: vagabunda, amasiada, dissimulada, herege... Pensava que fosse por não ter seguido os preceitos da igreja.
Cesinha em minha frente, silencioso. Esperava dele uma palavra conhecida. Só silêncios. E eu que não pensava não ver mais ninguém deles por aqui, vejo agora depois de tantos anos, ele calado em minha frente.
Rosa foi embora logo depois de José Dias. Ele foi trabalhar, um dia, e não voltou mais. Ela ficou só, com o menino. A vivência ficando difícil. Já não achava a roupa de ganho. O pouco que comiam vinha dum trabalho que arrumou lá no Sem-Fim. Rosa olhava para ele numa mistura de amargura e amor. Um dia, atrás de suas coxas brancas, que já não era tão firmes, ouvir dizer pro menino: “vem cá, teu pai foi, a gente também vai”. Eu Disse que dava sustento e olhava pras coxas brancas. “Não quero mais homem, não”, ela disse. Um dia arrumou as malas e foi com o menino.
Agora volta Cesinha, depois de tanto tempo. Olhei de novo para ele. Me olhou. Vi outras feições naquele rosto. “Quanto é?”, perguntou. Pagou e saiu. Igualzinho aquele dia, faz vinte anos.

2 comentários:

  1. Bom ver o Velho Paulo na ativa e com um conto de fólego!!!!!Parabpens Grand Paulo

    ResponderExcluir
  2. Belo conto, causo singelo de uma geografia borrada pelo tempo. Muito que bem. Aquele abraço.

    ResponderExcluir