sexta-feira, 21 de agosto de 2009

À noite, todos os gatos são pardos

Não lembro quando começamos aquilo. Ninguém acendia a luz se o outro estivesse deitado. Às vezes, eu vinha primeiro, deitava-me e esperava. Ela chegava pouco depois, ainda molhada do banho. Via a toalha escorregar sobre seu corpo úmido sob a penumbra do quarto. Pegava os potes de cremes e hidratantes um após o outro. Gostava de vê-la despejando-os nas mãos e deslizando pelo corpo: os seios fartos, o ventre redondo, as coxas grossas. Depois jogava-se sob a coberta roçando o corpo no meu. Eu já impaciente, lançava-me à cartografia de seu corpo. E trepávamos adiando o silêncio diáfano da noite.
E o dia acordava com uma suave fragrância, presente de seu último aniversário. Ela, com os cabelos úmidos, parecia prolongar a noite anterior. À mesa, o café nos esperava para as pequenas simetrias: os pães, o suco, por fim o café, que bebíamos prolongando a despedida.
“Também te amo”, eu repetia já pegando minha bolsa para ir às aulas.
Quando não assim, ela vinha primeiro. Eu ficava escrevendo alguma coisa ou corrigindo atividades de alunos. Estendia-me nestas tarefas até a exaustão. E então ia deitar. Abria a porta. Deixava o copo com a prótese dentária sobre a cômoda e, num roteiro já definido na escuridão do quarto, tomava meu lugar no lado esquerdo da cama. E desabava no sono, só despertando às seis, com o som estridente do velho rádio relógio. O café era menos demorado e umbom dia seco me jogava na rua.
Nestes dias, prolongava minhas aulas. Falava duas horas seguidas sobre “Sôbolos rios que vão”. A maior parte da sala dormia. Camões já tinha ido às pampas há muito tempo. Ou então, analisava uma lira de Gonzaga. Brincava com a turma, dizia que o poema era um convite clássico para uma trepada. E que também era uma reflexão de como “aproveitar-se o tempo, antes que faça o estrago de roubar o corpo as forças, e ao semblante, a graça”. alguns riam, mas a maior parte ainda preferia um convite menos cult. A sirene tocava adiando o assunto para a próxima aula.
Em casa, ela esperava a senha para abrir um sorriso discreto. Havia uma pequena expectativa que nos fazia pisar em ovos. Umas provas a corrigir a levava para o quarto mais cedo sem nem dizer um “boa noite, querido”. Nunca discutíamos. Qualquer sinal de uma irritação o outro cedia, e havia aquela norma que os anos de uma vida a dois nos foi impondo. E que seguíamos a risca.
Mas há fissuras do real: um cego num ponto de ônibus, uma fuga de galinha, um risco de luz num quarto, que nos desperta e põe a fogo nossos códigos. Aconteceu num desses dias em que fui para o quarto primeiro. Ela chegou em sua toalha buscando os potes de cremes e hidratantes, deslizando-os em sua pele macia. Quando abria um dos potes, a tampa rolou de suas mãos e postou-se num canto escuro do quarto. Ela não o deixaria aberto. Sempre reclamava quando eu deixava o desodorante mal tampado, a toalha sobre a cama ou um sapato fora da caixa. Sim, senti que ela iria acender a lâmpada. Esperei.
Sua mão deslizou pela parede buscando o interruptor. Ouvi o clique. Ela nua em minha frente. Olhou-me e se agachou para pegar a toalha. Olhei-a e vi: seus seios pareciam se despregar do corpo, sua barriga parecia ganhar uma forma amorfa e de suas coxas grossas despencavam suas carnes flácidas. Ela também deve ter notado minha falência. Em seus olhos havia espanto.
Outro clique. O pote fechado voltara a seu lugar geometricamente delineado na cômoda. E ela deitou-se buscando seu lado da cama. Nesta noite não trepamos. A madrugada toda se encheu de grilos e gritos distantes. E de dentro da noite procurei a ave noturna, mas só encontrei minha própria voz martelando um noturno de Quintana. Ao meu lado podia sentir seus olhos abertos, procurando, na implacável solidão noturna, algum diamante perdido.
Mas havia a aurora e havia Clarice. E, à noite, eu fui o primeiro a entrar para o quarto.

5 comentários:

  1. Paulo, meu amigo, já te falei o quanto gostei desse teu conto, não foi? Você escreve bem pra caramba! Um abração!

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  4. Verdadeiramente notável. Continue nos agraciando com sua fartura lírica. Na prosa ou na poesia, tá valendo. Aquele abraço.

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  5. Se fossem nós ficaria imensamente feliz por sermos tão humanos. Mas, como eu sei que a lei da arte supera a realiddade," Amo você "por toda, essa humanidade, por essa realidade que tão natural e tão cruel . Louve sua arte, sua mente.E admiro sua sabiência

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