Os Encantos do sol (2013), primeiro romance de Mayrant Gallo,
exímio contista, nos convida para o jogo ficcional, à moda de Jogo
de Amarelinha de Cortázar ou das ficções de Jorge Luís
Borges. O autor adverte-nos na nota introdutória do livro que o
escreveu como entretenimento, como jogo imaginativo, com prazer. Em
tempos em que a literatura é vista como veículo de legitimação ou
inclusão de vozes marginalizadas, reafirmar a literatura como o
espaço do lúdico, do jogo, do saber pelo sabor do texto revela que
este campo continua aberto e transgressor.
Gallo nos convida para um jogo de incertezas. Os encantos do sol
é um romance-mosaico, aberto a muitas formas do gênero romanesco. O
romance se abre como múltiplas possibilidades de leitura: como uma
história de amor, como uma história de memórias, como uma história
fantástica, como uma história policial do gênero noir, como uma
história de ficção científica; enfim como uma história da
própria história. A seu modo e originalidade, Mayrant cria um
romance-labirinto, neles vários jardins se bifurcam e a nós
leitores resta-nos criar nossas asas de cera e nos expormos aos
encantos do sol.
Além disso, o romance nos apresenta um mosaico de citações de
obras literárias e cinematográficas. A narrativa resgata, sob a
forma de fantasma, como em Hamlet, o personagem machadiano Bentinho,
que geralmente aparece como o grande acusador que expõe a Dino Endre
suas derrotas e algumas poucas vitórias. Traz-nos ainda o conto “As
palavras”, da futura amante de Endre. Ainda à moda machadiana, o
relato exibe sua própria teoria e uma possível crítica feita num
possível verbete do autor.
[...] Prefiro acreditar em
consciência, pois, mesmo antes de chegar ao final, percebo que esta
história tem uma invulgar diferença em ralação a todas as outras
que, nos últimos anos, encerrei nas amarras do romance ou da novela:
ela nasceu da vida e para a vida se destina. Se há uma
característica que bem define o romance, é a sua matriz
autobiográfica, ainda que remota. Quanto à novela, é dos gêneros
literários o que melhor exprime a existência miúda, o cotidiano
mais corriqueiro, os costumes mais triviais, as sequências
inevitáveis do “estar no mundo”, as sensações perdidas – ou
que vão se perder, se não assimiladas pelas palavras – , os
insensatos embates humanos, as dúvidas e sonhos terrestres. Sendo
assim tentarei mesclar os dois gêneros. Não me interessa o que
dirão os críticos [...].
Quem nos leva a essa labirinto é Dino Endre, um escritor incumbido
de escrever um roteiro de uma Grafic Novel , talvez toda a
história do livro seja a história da construção dessa história.
O fio que nos conduz a tantas outras histórias anunciadas é o
romance entre Dino Endre e Polly, amante de professor amigo do
escritor, Victor. Em meio a esta história, conhecemos o casamento
falido de Dino e Virginia, que se separa de Dino para ficar com
Andrina, que deixa Virgínia para ficar com Dino, após esta propor a
Dino que engravide Andrina para que elas possam criar um filho, e,
mais tarde, as duas voltam a se juntar. Ainda temos o caso de Dino
com Georgia, uma mulher gorda, espécie de agente literário, que
recebe o roteiro e paga a Dino pelo trabalho. Como um folhetim às
avessas, a narrativa nos apresenta um monte de peripécias amorosas e
sexuais: traições, troca de casais, sexo a três; como se cada
personagem fosse se perdendo nos labirintos das outras, como se nada
pudesse se fixar.
Em meio a essas peripécias, como negação e afirmação de tudo
isso, temos o romance de Endre e Polly, que tem como espaço bucólico
a praia em Lus, uma imaginária cidade praieira do sul da Bahia. A
história em Lus divide-se em dois momentos. No primeiro, Endre
vislumbra, como o poeta diante da máquina do mundo, o esplendor de
Polly:
Foram as melhores núpcias
da minha vida. Seu corpo jovem era ao mesmo tempo um prazer e um
desafio. Parecia insaciável. E seu entusiasmo por sexo compensava
sua relativa inexperiência na variação de posições e desejos.
Cheguei a crer que a diferença de idade que nos separava era, em
suma, a ideal para todo homem e toda a mulher. Deixava-nos ajustados.
Foi como se meu desejo encontrasse seu espelho no vigor e na volúpia
que a alimentavam. Se ela me queria, eu estava pronto. Se eu me
aprontava, ela logo se deixava animar, naturalmente, numa simetria
até então impossível, irreal. Compreendi o porquê de Victor tanto
se esforçar por manter seu apartamento em Nazaré sempre aberto a
suas alunas malsucedidas nas provas. Elas lhe insuflam vida. Eram
como pedaços de sonhos, de utopias, a substância que o mantinha de
pé (p. 44).
Depois desse momento, eles compartilham por certo tempo a vida, os
corpos. E, como geralmente acontece, separam-se para se encontrarem
mais tarde na mesma Lus. Mas este reencontro acontece num clima de
romance policial noir. Ao separarem-se, Dino engravida Andrina
e passa a conviver com ela. Polly passa a viver com Victor, seu
antigo amante. Polly some, e Dino e Victor, como dóis “detetives
selvagens”, tentam descobrir seu paradeiro. Depois de voltar sem
resultado, Endre pensa que Polly só pode esta no sítio bucólico em
que se refugiaram da primeira vez. O reencontro é marcado por uma
alegria recíproca:
Polly tirou os óculos e me
olhou. Sua alegria foi tão ampla quanto a de uma criança que revê
seu brinquedo perdido, que, durante muito tempo, só pudera resgatar
em sonho. Naquela tarde, nos amamos como seu eu tivesse saído da
cadeia, e por muito tempo ela houvesse me esperado... Do parapeito da
janela, incendiado de sol, Herberto nos observava (p. 102).
Chega o inverno e Polly convence Endre a ficar no hotel, como espécie
de caseiros de um amigo e possível caso de Polly. Numa referência
explícita ao Iluminado, de Kubrick, lá vão viver
experiências extremas. Tornam-se cúmplices de um estranho
contrabando. Vivem relações eróticas com um casal da pequena Lus,
Roberto e Liliane. Descobrem que Roberto foi vítima de um possível
assassinato. Fogem. Em meio à fuga, Polly joga o estranho objeto do
contrabando no rio e some, deixando Endre sozinho no ônibus para o
resto de sua vida. No suposto lugar para onde Polly foge, um hotel é
construído e logo depois destruído por um incêndio.
Ao fim da narrativa, as veredas tornam a se bifurcar. O narrador nos
revela uma história dentro da história, como se a narrativa se
configurasse uma Matrioshka. Mas toda a narrativa é uma busca de
Dino Endre de organizar o vivido, uma forma de superar o passado,
como ele mesmo, ou um autor implícito que vinha conduzindo os passos
de Endre, afirma no final do romance: “Agora você sabem. Todos nós
sabemos. Ainda luto para esquecê-la. Meu céu humano”.
Não sei se me tornei o leitor que o autor Mayrant Gallo esperava ter
na nota do livro. Mas me diverti jogando com o texto, tentando montar
seu quebra-cabeça móvel, que a todo momento deslocava os espaços
das peças. Li-o, ao meu modo, ao influxo da “imaginação, do
prazer e do acaso”. Com esta narrativa, Mayrant reforça o poder da
literatura de estar para além das injunções históricas. No
momento em que apregoam que a literatura deve dar voz aos desvalidos,
Mayrant revela-a como espaço do jogo, do lúdico e do homem em todas
as suas facetas.
Paulo André Correia. Professor substituto da UNEB e da Rede
Estadual de Ensino.
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