O Jeito
de matar lagartas (2015, Companhia das Letras) de Antonio Carlos Viana nos
arrebata pelos “sentimentos radicais” encenados nos contos: como a consciência da
morte, da ruína do corpo ou o erotismo, destituído quase sempre da noção de prazer. Os personagens – velhos, sobretudo –, são marcados pela aguda consciência da passagem
do tempo, representada pela cruel decadência dos corpos.
Jeito de matar lagartas revela que a literatura – a autêntica – não é inocente. Ele
nos provoca e nos contamina, desnudando a pequena miséria humana. O livro nos
põe diante de contos que reverberam a crueldade da vida humana. Ao devassar a
vida das personagens das narrativas que o compõe, o livro nos põe diante de
nossa própria devassidão. É aí que está o seu valor, pois nos permite tomar
consciência de nossa condição.
Diferente dos livros anteriores em
que a infância, associada à descoberta tumultuada de algum aspecto da realidade,
ganha maior destaque. Jeito de matar
lagartas dá ênfase ao mundo adulto, em alguns textos ao universo da velhice.
Em um mundo marcado pelo “culto
solitário do corpo” e pela recusa desesperada recusa de si, o livro de Viana
nos deixa diante da certeza de que “cada dia, a cada hora, cada minuto, [é] uma
derrota garantida, um passo em direção ao próprio desastre” (Carrière, 2007).
É o que acontece, por exemplo, em
“Dona Katucha” que narra a história de uma velha que tenta fugir da consciência
de que seu corpo envelheceu e já não atiça os olhares dos homens. A solução
para ela é: “depois de beber, [passar] batom nos lábio e se [ir] trôpega pelos
corredores, evitando as vitrines espelhadas”. Ou em “Professor Locarno” que
conta a história de um velho professor de quem a família comemora mais um
aniversário. No momento da festa, seu desejo era que “o coração afrouxasse de
vez e nunca mais ele soubesse o que significava outro dia”. Mas o outro dia
chega com a enfermeira que vem trocar sua fralda e que, a ele, parece Carmen
Miranda.
Ainda nessa linha “Florais” com
história de Dona Delfina, que, mesmo com a decadência do corpo, ainda vislumbra
a possibilidade do prazer, pois “tudo com Alan Delon se desenrolara com tanta
naturalidade que ela não se assustou com nada, e só mesmo a Fúcsia da
Califórnia para lhe dar aquela coragem de dizer que ainda havia um território
em seu corpo que nunca fora explorado”.
Na outra ponta da vida, a da
infância, no conto que empresta título ao livro, Jeito de matar lagartas, o menino-narrador faz uma associação entre
as formas com que matava as lagartas e o jeito como a tia se contorcia embaixo
de seu Laurentino. Uma precisa
associação entre prazer e morte. Em “Muralha da china”, a perspectiva infantil nos
coloca diante da cena que dois irmãos, entre eles o narrador, montam para que
os pais contem à vizinha a morte de seu esposo e de seu filho. O anúncio se
transforma em um baquete desesperado até o momento em que a vizinha intui pelos
implícitos e vazios da fala da mãe dos meninos a desgraça que lhe havia
acontecido. Em “Cara de Boneca” a perspectiva infantil encena um erotismo
cruel. Neste conto, o menino-narrador e seus colegas se dividem entre o ódio a
dona Glorita e suas aulas de Camões e as experiências eróticas e o exercício da
crueldade com seu Lilá – Cara de boneca. O menino-narrador no clarão de lucidez
chega a afirmar que “[...] o mundo se dividia entre os de coração aflito e os
de maldade extrema”.
O sentido dessas histórias não estão
só nos temas, mas também na linguagem com que são construídas. A linguagem de
Antônio Carlos Viana caracteriza por uma economia verbal marcada pelo uso
direto das frases, por uma sintaxe enxuta e por uma extrema precisão vocabular.
Muitos dos contos já começam buscando nocautear o leitor, como em “Cremação”:
“Dona Deusinha sempre teve horror a morto”.
Jeito de matar lagartas nos põe diante de situações em que os personagens vão
despertando para a consciência da presença iminente da morte, da decadência do
corpo, para o despertar do erotismo, cada vez mais dissociado da ideia de
prazer. Como nos livros anteriores, a epígrafe apresenta a tônica do livro. E o
verso de Wislawa Szymborska, sinaliza bem para o que é esse Jeito de matar lagartas: “Não há devassidão maior que o pensamento”.
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