Li
numa aula o conto “O amor como deve ser”, do livro O
inédito de Kafka
(2003), de Mayrant Gallo. Ao terminar a leitura, um silêncio
incômodo se estendeu sobre a sala. Esperei algum comentário sobre
o texto, alguma fala. Nada. Perguntei então o que acharam do conto.
Uma aluna respondeu que o conto deveria se chamar “O amor como não
deve ser”.
Ela
leu o conto apenas pela história, pelo “acontecimento” (LEWIS,
2009). Como a história lhe causou uma impressão desagradável, sua
solução, a princípio, foi mudar o título da história para que
ganhasse um sentido negativo, de censura. Ela não recebeu “o texto
em seu pleno direito”. Como a narrativa contrariou sua visão de
mundo, seu código ético-moral, sua primeira atitude, foi
censurá-lo.
“O
amor como dever ser” é uma narrativa dividida em duas histórias:
a de Cátia e Cláudio e a de Cátia e o pai. Na primeira, num dia
chuvoso, ela convida Cláudio a sua casa. Havia decidido transar com
ele. Cláudio se lança a uma aventura intrépida que o jogaria de
vez no mundo adulto. Cátia espera, aguarda em casa o jovem moço que
se enche de dedos e não sabe conduzir uma partida ancestral entre um
homem e uma mulher. Cláudio não soube decifrar os signos do jogo,
da sedução.
Surge,
então, a história de Cátia e a o pai. Ela agora é a aventureira
intrépida que se lança numa aventura transgressora. Numa
sexta-feira, o pai vai busca-la para passarem, juntos, o fim de
semana juntos. Logo, o texto nos põe diante da relação incestuosa
entre eles. O pai, exímio jogador, saber ler os signos do jogo
homem/mulher. Um jogador que, mal recebe a filha, “toca de leve o
tecido liso de sua calcinha” (GALLO, 2003, p. 12).
O
conto, um exemplo da modernidade do gênero, fecha-se com um final
aberto para que nós, leitores, decidamos o destino das personagens:
“Cátia se aproximou do pai e se enroscou
em seu braço musculoso. Envolto numa sensação de boa de calor, ele
fechou os olhos. Ela, ao contrário, abriu ainda mais os seus.
Abriu-se sobre o pai, na noite, na estrada, no bloco veloz, que, de
repente, surgiu diante deles...” (GALLO, 2003, p. 16).
Cátia,
dois homens: Cláudio e o pai. Entre ela e Cláudio só a sintonia
melódica dos nomes. Entre ela e o pai:
“marcas autênticas e mensuráveis do que
tinham feito com a coragem que só o amor real e o desejo puro
alimentam” (Gallo, 2003, p. 16). Marcas que um dia se “levantariam
para censurá-los ou aplaudi-los, marcando uma nova etapa secreta”
(GALLO, 2003, p. 16).
Ao
ler o conto como um libelo ao incesto, perdemos muito daquilo que a
literatura tem a nos oferecer. Lê-lo desta forma é esquecer que no
texto literário não apenas a história interessa, mas também a
forma como ela é contada. É preciso ler o texto por aquilo que ele
nos dá a ler. Não somente em sua significação literal, sua
significação de superfície, mas também pelos implícitos, pelos
vazios, pela metáfora. O texto literário significa como sinal e
como sintoma, ou seja, o texto significa literalmente e
metaforicamente (Jouve 2012). Literalmente, O conto nos dá a ler que
o amor dever ser como o de Cátia e o pai: incestuoso. Mas e
metaforicamente?
O
primeiro aspecto para ler este conto como sintoma é entendê-lo no
contexto da literatura contemporânea. O texto não se apresenta como
uma fábula moral e edificante. Pelo contrário, traz uma marca da
literatura moderna e contemporânea: a sua negatividade. Mayrant
Gallo dialoga com uma tradição que que passa por Rubem Fonseca,
Dalton Trevisan, J. J. Veiga, Machado de Assis, Faulkner, Hemingway,
Nabokov. Como diria Bataille: a literatura não é inocente.
O
amor entre Cátia e o pai é intenso, carnal, transgressor. Nele as
interdições estão suspensas. Literatura é metáfora e jogo. Não
podemos ficar apenas na história de superfície. A história do
conto mexe com um tabu de nossa cultura, mas o autor não pretendeu
dizer que o amor verdadeiro é entre pai e filha. Não é essa a
defesa do texto. Em tempos de “amores líquidos”, em que as
relações terminam tão rápido quanto começam, em que as relações
são tão fágeis, insossas, passageiras, pobres, “O amor como deve
ser” nos propõe uma receita de amor, que necessariamente não é
durável; mas intensa que tradu-se pelo verso de Vinicius de Moraes:
“Que seja eterno enquanto dure”.
Talvez
o conto deva ter o título sugerido pela aluna acima, não pela
história que conta, mas pela que sugere.“O amor como deve ser”
nos aponta, às avessas, que estamos cada vez mais em relações
enlatadas, superficiais e insossas.O conto faz parte de um livro de
contos que nos oferece uma visão implacável da vida contemporânea.
Em outro conto do livro, “A vida num domingo”. O sujeito, para se
sentir vivo, arromba um apartamento de três jovens e, além de
roubá-los, comete as maiores atrocidades com um cãozinho.
Ler
o texto é olhar para as suas nuances, seu ritmos, suas escolhas
lexicais, sua arquitetura narrativa, seus personagens, seu espaço,
seu enredo. Lê aquém e além da história. Para aquilo que ele diz
sem dizer. E, aqui, vale lembrar a vereda de leitura que nos abre
Miguel Sanches Neto na orelha do livro O
inédito de Kafka
(2003): “Há uma preferência pelos seres desajustados. Não há
possibilidade de redenção pacífica”. Mas ainda, a contracapa, de
autoria indefinida, os personagens “abandonam seus fracassos, a
mesquinha ordem cotidiana, e partem para a aventura, como Ícaros de
nossos dias”. Essa passagem não explica bem “O amor como deve
ser?
Para
ler “Iniciantes”, de Raymond Carver, é necessária a mesma
disposição para ir além do “acontecimento”. O conto narra o
que seria uma conversa trivial de dois casais numa tarde de sábado,
regida a gim. Como que por acaso, entram no tema do amor. Um dos
personagens, Herb, um cardiologista, resolve desenvolver sua tese
sobre o tema. Para ele, “o amor verdadeiro não pode ser nada menos
que o amor espiritual”. Herb, divorciado, é casado com Terri, que
fora casada com Carl, um sujeito que tentou matá-la e que depois
suicidou. Para ela, tudo fruto do amor desesperado.
Quem
narra a história é Nicky, um dos presentes a conversa. Talvez, um
escritor, que observa para depois, no relato, nos dá sua visão
sobre o tema. Nicky costura a narrativa para que, à medida que Herb
for expondo sua tese, buscando clarear a definição de amor, o
ambiente externo vá escurecendo, como se o sentido da tese e dos
próprios personagens estejam se tornando obscuros. A conversa
abala-os. Herb e Terri que afirmam amarem um ao outro ainda trazem
muitos marcas das relações anteriores. Algo foi modificado após a
conversa. Nicky diz: “Tive a sensação de que alguma coisa ia
acontecer, era a lentidão das sombras e da luz e, o que quer que
fosse aquilo podia me levar junto” (p. 278). Terri desaba no choro.
E Laura, companheira de Nicky a consola. Ela olha para ele que pensa:
“Foi como se me dissesse: Não se preocupe, vamos superar isso,
tudo vai dar certo com a gente, você vai ver. Fique frio” (279).
Nicky
então vira-se para a janela para descrever o escurecer. Mas o
escurecer não é só externo, natural e um escurecer íntimo,
psicológico, subjetivo, dele e dos outros personagens:
[...] Virei-me para a janela. Agora a
camada azul do céu havia se rendido e estava escurecendo, como o
resto. Mas tinham aparecido umas estrelas. Reconheci Vênus e, mais
longe e para o lado, não tão brilhante, porém lá, no horizonte,
de modo inequívoco, Marte. O vento havia ficado mais forte. Vi o que
ele estava fazendo nos capinzais desertos. De modo insensato, pensei
que era muita pena que os Mcginnis não tivessem mais cavalos. Eu
queria imaginar cavalos correndo por aqueles campos, na penumbra do
crepúsculo, ou apenas parados, sossegados, com a cabeça voltada na
direção oposta à cerca. Fiquei junto à janela e esperei. Sabia
que tinha de ficar quieto por mais tempo, manter os olhos voltados
para lá, para fora da casa, enquanto houvesse alguma coisa para ver
(CARVER, 2009, p. 279).
Este
é um último parágrafo do texto, lê-lo na sua literariedade; é
perder a riqueza de matizes significativas que o conto nos oferece. O
primeiro aspecto é comparação: “escurecendo como o resto”. O
que seria este resto? Talvez suas certezas, suas verdades, seus
sentidos. Em seguida, a frase que expressa o nascimentos de Vênus e
Marte. Dois astros celestes nomeados com os nomes da deusa do amor e
do deus da guerra, na mitologia greco-romana. O narrador revela logo
Vênus e vai delineando, encompridando a frase com elementos
intercalados até apresentar Marte, no polo oposto, mas ali,
presente. Logo após essa apresentação, o vento fica mais forte. E
ele deseja que os anfitriões tivessem cavalos. Mas o que significa
cavalos aí? Um estado natural, liberdade? Na simbologia, os
componentes animais e irracionais do homem. O estado natural.
Desesperado,
tentando reter algo, Nicky continua olhando pela janela para não
deixar escapar ainda o que pudesse ser visto. Mas ainda tentar, pelo
olhar, capturar algo que ainda tenha sentido.
Dois
contos, o mesmo tema. No primeiro, uma receita de amor às avessas,
no outro uma tese que pouco esclarece, mas que dilacera certezas.
Duas histórias que não se esgotam na superfície das histórias que
contam, mas que nos dizem muito pela forma como as conta. Pela
metáfora que encerram. Pelas experiências singulares que
dramatizam.